e macetes da profissão. Dom Pepe a estimulava: “Querida, se um dia
eu vier a faltar, se um dia ocorrer meu decesso, você me substituirá.
Usted será a primeira mágica abaixo do Equador.” A única
falha, se é que se pode chamar isso de falha, é que Dom Pepe,
após falsamente serrado ao meio, desembaraçou-se lépido
do caixão, mas com um pequeno corte, superficial, na altura do umbigo.
Todavia nada sério. O público não percebeu o acidente.
Isso aconteceu faz tempo. Lamentável que a idéia de abrir para
as mulheres o mercado de trabalho não prosperou. É o único
setor produtivo em que mulher não pia. Dom Pepe veio a falecer. Rosoleta
mudou-se para Paris. A última vez em que dela tive notícias foi
por um bilhete, que transcrevo, para mostrar que mágica é a vida.
Vejam a mulher sensível que é: Et voilà, je suis à
Paris! Escrevo de um cyber café no Les Halles. Como se trata de um lugar
mais econômico, estamos, lado a lado, marroquinos, negros e estudantes.
Nada como fazer parte do mundo globalizado. A poucos metros, na galeria Les
Halles, os franceses se divertem com o programa favorito dos americanos: as
compras. Como sou apenas uma observadora, mais pelas contingências do
que propriamente por opção, não desembolso um euro e me
divirto a beça pensando que o melhor mesmo é continuar procurando
uma oportunidade de me apresentar serrando algum mágico num espetáculo
do Lido para turistas. Aqui na Cidade Luz eles ainda não conhecem esse
número. Quando me sento num banco da Place des Vosges e sorvo cada segundo
de vida nesta paisagem, tenho vontade de passar nela todos os instantes. Então
me pergunto: o que haveria outra coisa para fazer aqui? Ainda não tive
um insight sobre o que farei da vida… Enquanto não tenho respostas,
só me resta flanar. Bisous! Lembranças para Tinoco, o engolidor
de espadas, e toda a troupe. Diga a ele para me esquecer. Rosoleta.
Embora
se diga, e é verdade, que as grandes mágicas acontecem no dia-a-dia
da vida rotineira, sem que se preste atenção nelas, costuma-se
dar valor especial a fatos que extrapolam, ao menos nas aparências, a
capacidade de percepção imediata dos fenômenos. Aliás,
não são bem fenômenos; são truques. São prestidigitações.
Habilidades técnicas. Os mágicos, esses profissionais do fazer-de-conta,
não acreditam em mágicas. Eles se esmeram em manipular a criatividade,
a agilidade das mãos, em muitos casos a engrenagem de equipamentos modernos
para criar o mundo do impossível. Como é que se vai entender que
da cartola vazia saiam vivos, saudáveis, cinco pombinhos brancos? Os
quais depois são recolhidos para ser apresentados novamente na sessão
seguinte? Como explicar que de um tubo oco, inofensivo, sejam extraídos
(“num passe de mágica”) dois metros de lenços coloridos,
um atado ao outro, arco-íris admirável de surpresa? Isso para
falar apenas de mágicas simples, até é caso de dizer banais,
sem apoteose feérica. Mágicas de aprendiz.
Mesmo serrar mulher de maiô num caixão, fazê-la reaparecer
sem emendas, esbanjando mesuras ao público, não deixa de ser um
trabalho honesto, meritório e admirável; porém, sejamos
francos, perdeu a graça. Em qualquer circo de periferia a cirurgia é
manjada. Todo mágico, com um mínimo de decência, apresenta
o número.
Foi pensando em variar o repertório que Dom Pepe teve a idéia
de inverter os papéis, após intenso e dedicado período
de treinamento. Escolheu Rosoleta – Rosa Maria de Almeida Lemos –,
sua experiente partner, para apresentar pela primeira vez ao público,
ao vivo, um número em que Rosoleta serrava Dom Pepe dentro de um caixote
com espelhos. Deu quase tudo certo. Com cinco anos e três meses de ajudante
de mágicas, Rosoleta sabia todos os truques