Entrevistas

Mestra Janja: “Se penso na África, estranho menos a presença da mulher na capoeira”

A baiana Rosângela Costa Araújo, mais conhecida como mestra Janja, é uma das mestres de capoeira mais respeitadas do País. Até a adolescência, porém, sequer pensava em se enveredar pela atividade. Sua família – boa parte branca – não via com bons olhos as práticas associadas aos negros. Chegou a cursar educação física, mas largou tudo na primeira vez que entrou na roda do Grupo de Capoeira Angola Pelourinho (GCap), em Salvador. Naquele espaço, havia o que buscava até então: pensar o corpo e a identidade histórica ao mesmo tempo.

Enquanto se desenvolvia nas rodas, se graduou em história pela UFBA e se tornou doutora pela USP. As questões étnico-raciais e o papel da mulher na sociedade começaram a pautar suas ações dentro da capoeira. Criou o Grupo Nzinga de Capoeira Angola, em São Paulo. O Nzinga se tornou uma referência de luta pela identidade africana e pela igualdade das mulheres – dentro e fora das rodas. Ela também se tornou membro do Conselho Estadual de Política para Mulheres da Bahia.

Nesta entrevista ao Almanaque, mestra Janja fala do papel transformador da mulher na capoeira, como dialogar com os mestres mais velhos em relação às transformações sociais e de sua fé em um país melhor. “Algum tempo atrás teria dúvidas, mas hoje eu acredito. Não tem mais armário que caiba ninguém”.

Como você se aproximou da capoeira?
Eu nunca havia pensado em fazer capoeira. Não há história de capoeiristas na minha família. Sou de uma família interracial, com a maioria branca. As questões vinculadas às tradições afro-brasileiras nunca foram muito bem vistas. Pelo contrário. Sempre foram associadas aos estigmas de malandragem, de marginalidade. Ao mesmo tempo, sempre convivi no mundo das atividades físicas. Comecei a praticar esportes pequena, passei por vários, até chegar no handebol. O handebol me levou à faculdade de educação física. Certo dia, uma amiga me falou do retorno de duas pessoas a Salvador que faziam uma capoeira esquisita. Eu pedi para ela me levar nesse lugar. Quando cheguei, eram Moraes e Cobrinha [também conhecido como mestre Cobra Mansa]. Perguntei o que eu tinha que fazer para praticar a capoeira angola. Me disseram: “É só entrar”. Coloquei a bolsa no chão, entrei na roda e nunca mais saí.

Qual foi o impacto inicial para sua vida?
Foi um encontro muito marcante. O primeiro foi ter a certeza de que a educação física não seria a minha profissão. Eu já vinha buscando uma forma de pensar o corpo pautado num pertencimento histórico, num contexto cultural, e sentia falta dessas abordagens na faculdade. Foi um choque absoluto quando encontrei a capoeira. Aquela coisa cheia de África, de espiritualidade e de convivência comunitária. Decidi que não cresceria mais sobre o outro, como as atividades esportivas comuns pregam, mas com o outro. Fui fazer uma outra faculdade e, por conta da capoeira, mergulhei de cabeça nos estudos sobre a presença africana no Brasil e sobre estudos étnicos e raciais. Posteriormente, isso me conduziu ao feminismo. Mais especificamente, ao feminismo negro.

Fotos: Bento Andreato

A capoeira, como a sociedade, tem um certo machismo muito presente, não?
Primeiro, temos que pensar que a capoeira pertence à cultura africana. No contexto africano, não se encontra esses modelos de divisão sexual do trabalho que é encontrado na cultura ocidental. A ação do patriarcado não é o mesmo. A mulher no ocidente, por exemplo, é um ser destinado à existência doméstica e à procriação. Já na África, as mulheres estão mais na comunidade, são mais sociais. São os papéis geracionais que vão configurar essas hierarquias, e não o gênero. A palavra ginga, por exemplo, vem do nome da rainha Nzinga. A ginga é um movimento específico de corpo, mas é também um movimento filosófico, político, uma ação prática de transgressão política. Isso vem de uma mulher. Outro exemplo: um dos mitos que está na origem da capoeira é o da dança N’golo, um rito de passagem para a menina virar mulher. Se penso na África, estranho menos a presença da mulher na capoeira.

Na origem, as brasileiras também estavam presentes na capoeira?
Total. Só lembrar de Maria Homem, Julia Satanás, Júlia Fogareiro e outras, que eram mulheres que transitavam nas ruas, diferente das donas de casa e proprietárias de escravos. O direito para as mulheres brancas trabalharem fora foi alcançado a partir das conquistas feministas da década de 1960. Mas as descendentes de africanas sempre estiveram nas ruas, sempre transitaram em espaços considerados masculinos. Aprenderam a conquistar e a ampliar espaços. São questões bem diferentes. O que causa estranhamento na história recente da capoeira é a posição da mulher num contexto mais amplo, como a própria economia da capoeira. A capoeira há menos de 100 anos era contravenção penal e hoje está em 165 países. Nao estou dizendo que em 165 países só tenha homens. Em alguns países há até mais mulheres do que homens.

As mulheres hoje reivindicam espaços, a quebra da invisibilidade, o fim da violência misógina. Nós estamos dizendo que também estamos no trânsito entre o mundo da capoeira e o da sociedade.

Quais visões novas essas mulheres trazem hoje?
Elas trazem experiências distintas que não apenas aquelas das negras africanas ou das negras descendentes de africanas no Brasil. Algumas estão mais afinadas para combater o modelo de dominação que o patriarcado exerce no ocidente; outras, nem tanto. A capoeira é uma vitrine da nossa sociedade, e essas questões também chegam nela. As mulheres hoje reivindicam espaços, a quebra da invisibilidade, o fim da violência misógina. Nós estamos dizendo que também estamos no trânsito entre o mundo da capoeira e o da sociedade. Não poderia ser diferente. O desafio é articular tudo isso num contexto tradicional.

Há grupos de capoeira só de mulheres. Qual sua opinião?
A princípio, não sou favorável, mas não tiro a legitimidade de quem tem feito. De alguma forma, está respondendo a uma realidade de não ser mais conivente com algumas coisas. As mulheres dão conta disso, têm autonomia. Mas eu penso a capoeira no contexto das heranças africanas e que, como tal, também tem que ensinar o ocidente a pensar as relações de gênero. Temos caminhos próprios para isso. Dentro da capoeira, sabemos o lugar do mais velho e o do mais novo. São esses fundamentos que temos hoje, mais do que nunca, para mobilizar e não ter que precisar pensar os processos de segregação dentro da capoeira como projetados hoje. Existiu inicialmente um movimento de grupos só de negros, e hoje já existem a reivindicação de grupos só de mulheres. Não me entrego a nenhum desses dois caminhos, mas não tiro a legitimidade. É mais do que tolerar. Mas reconhecer o que tem dentro do outro que pode ser desestruturado para imprimir um “nós”, um grupo, independente de coisas que historicamente têm nos separado. A capoeira tem muito a ensinar.

Na busca dessa empatia, como o trabalho do Nzinga tem atuado em dialogar com os mestres mais velhos?
Nós transitamos o tempo todo entre os grupos. Tenho chamado a atenção para o desafio de não perdermos os referenciais de africanidade. Também para se posicionar contra o risco de retrocesso. Há apenas 40 anos se deixou de pedir alvará na polícia da Bahia para se promover uma roda de capoeira ou uma festa de candomblé. Com o campo político que vivemos, isso pode voltar. Em relação às mulheres, é muito comum os homens reconhecerem apenas três mulheres no mundo: a mãe, a filha e a própria esposa. Então usamos isso quando necessário. Às vezes pergunto para determinados mestres, mostrando casos como o estupro coletivo no Piauí ou sobre o número de mulheres que sofrem violência dentro da capoeira, se fosse com a sua filha ou com sua esposa, como se posicionariam a respeito? É uma das armas que temos.

As tradições também são dinâmicas. Elas dialogam com o entorno o tempo todo. Por exemplo, hoje não cabe mais fazer uma música racista dentro da capoeira.

O que acha de transformações nas tradições da capoeira?
As tradições também são dinâmicas. Elas dialogam com o entorno o tempo todo. Por exemplo, hoje não cabe mais fazer uma música racista dentro da capoeira. É muito comum dizer que, no passado, eram os próprios negros que cantavam. É verdade, mas tinham um propósito e uma forma de cantar que identificam o processo de resistência negra. Atualmente, não. Hoje, a gente tem organizações do movimento negro que são capazes de vir atrás de um grupo para interpelar o fato de ter colocado uma música racista. A mesma coisa em relação ao sexismo. O que temos feito é refletir ao máximo as dinâmicas da capoeira.

Para terminar: você acredita no Brasil?
Algum tempo atrás teria dúvidas, mas hoje eu acredito. Não tem mais armário que caiba ninguém. O povo preto está nas ruas fazendo pretices, as mulheres estão nas ruas fazendo mulherices. Estamos nas ruas mostrando como a gente é, com essa noção de produzir deslocamento de forma conjunta, e não mais sendo conduzidos. Esse fenômeno está acontecendo principalmente nos centros urbanos, o que é extremamente importante, já que causa desdobramentos no interior. Eu sou, acima de tudo, uma mulher de libra. Sou movida pela crença. O momento em que a gente vive as pessoas falam por si só, são autorais de seu próprio destino, donas de seu próprio espaço. É algo marcante, impressionante, e que nos permite, sim, pensar num Brasil melhor.

Por Bento Andreato