RACISMO
“Negro e pronto!”
O verso acima, citado por um de nossos entrevistados, resume o pensamento dos afro-descendentes. Por mais que tenhamos avançado rumo à “democracia racial”, o preconceito ainda se manifesta a todo momento; e o 13 de Maio é oportunidade para “saravá” os ancestrais e refletir sobre a questão racial entre nós.
Entrevistados
Benedita da Silva – Vice-governadora do Rio de Janeiro.
Nei Lopes – cantor, compositor e escritor.
Thereza Santos – Socióloga, assessora de Cultura Afro-brasileira da Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo.
Como deve ser lembrado o 13 de Maio?
Benedita – Dia de lembrar que não somos totalmente livres e apontar ações que nos tornem livres.
Nei Lopes
Nei – Deve ser comemorado. Não foi ape nas estratégia das elites para se livrar de um fardo. Foi também resultado da mobilização de lideranças negras, de setores do povo negro. Na letra de um jongo, reivindico: O dia é tanto treze quanto vinte/ Vambora que o negócio é o seguinte/ Um é feriado novo /O outro é para todo este povo/ Vamos os dois festejar. O 20 de Novembro é dia de celebrar Zumbi. O 13 de Maio é dia de “saravá” os pretos-velhos, com jongo, macumba, samba, mungunzá.
O 20 é o Dia da Consciência Negra e o 13 é o da Ancestralidade.
Thereza – Reafirmando a data como dia nacional da luta contra a discrimina-
ção e o preconceito.
Conforme aumenta o poder aquisitivo do negro, diminui o preconceito?
Benedita – Quanto maior o poder aquisitivo, mais sofisticado o preconceito. Ainda hoje, reservas de apartamento ou hotel se aconselha fazer por telefone.
Nei – Não. As pessoas “sem berço” são igualmente discriminadas, como se vê com jogadores, pagodeiros.
Thereza – O poeta Cuti escreveu: “Negro e pronto! Contra o preconceito branco.” Infelizmente, não importa poder aquisitivo, formação profissional, escolaridade; é negro e pronto.
Benedita – A descrença, a desfaçatez e o mito da democracia racial.
Nei – A desqualificação do que vem da matriz africana. Práticas culturais foram caracterizadas como retrógradas, até nocivas; a música, como monótona e lasciva; a religiosidade, como conjunto de superstições; a medicina, como anti-higiênica e inócua. Outro mal é a ocultação da presença negra. Por exemplo, no dicionário Larousse, o cantor Al Jolson é “americano de origem judaica”, como o compositor George Gershwin. No Brasil, raramente figuram personagens realçados em sua circunstância étnica. A pista para você identificá-los é a rubrica “nascido em lar humilde”. O requinte foi o retrato americano: por meio de pintura sobre fotografia, o fotógrafo “embelezava” o retratado, pelo clareamento da pele e alisamento do cabelo. Nos livros de história vêem-se reproduções desses retratos.
Thereza – É a sociedade continuar se re-cusando aceitar que saímos do estado de objeto para o de sujeito. Todos os outros males são conseqüência.
Quais os maiores males deixados pela herança escravocrata?
É comum ouvir que no Brasil o preconceito é menos ostensivo.
Benedita – Só quem não quer ver: preconceito aqui está na cara.
Nei – O mito da democracia racial foi tão difundido, que muitas vezes as pessoas são racistas sem se dar conta.
Thereza – O disfarce fica por conta da “democracia racial” e do “preconceito de ter preconceito”. O preconceito é ostensivo e violento. Veja a Polícia Militar, agente direto da maior forma de violência contra negros e pobres.
Que pergunta você gostaria de responder sobre este tema, que nunca lhe fizeram?
Benedita – Se o racismo é de dentro para fora ou de fora para dentro.
Nei – Se hoje o samba é objeto de discriminação racista. E responderia: atendendo à globalização de mão única, só se aceita música negra se for um pouquinho pop. Se insiste em afirmar valores afro-brasileiros, é desqualificada como pobre e anacrônica, ou é desafricanizada e esvaziada. Caso da música afro-baiana diluída em axé music ou, na melhor das hipóteses, em afropop. E caso do samba imposto pelas gravadoras, com sua sensualização infantil e coreografias padronizadas.
Thereza – Se o movimento negro está organizado em todo o País: sim, em que pesem imensas dificuldades. Mas temos conseguido vitórias e a certeza de que este é o caminho na busca pela igualdade e dignidade.
Dados do IBGE: rendimentos do médico negro são 22% mais baixos; pedreiro negro ganha 11% menos. Ainda temos dois mercados de trabalho?
Benedita – Competência, inteligência, na óptica do empregador preconceituoso, têm uma etnia preferencial, não-atribuída ao negro.
Nei – Na Colônia e no Império, escravo era coisa, fora do alcance da justiça social. Na República, com a desorganização da produção agrícola e a falta de uma política fundiária, os negros vieram para as cidades engrossar a massa de miseráveis. E o imigrante, depois da lavoura, passou a ocupar espaços do trabalho assalariado próprio dos negros. A estes restaram ocupações pesadas e de menor remuneração. Isso se perpetua. Os descendentes dos imigrantes é que são hoje empresários, políticos poderosos, juízes superiores.
Thereza – O Brasil se esconde atrás da “democracia racial” para justificar as desigualdades pondo a culpa no próprio negro. Para mudar, o Brasil teria de ter coragem para se encarar como país mestiço e encarar o negro como parte integrante desta nação, ou se assumir de vez como país racista.
A discriminação racial é ilegal desde 1951 graças à lei Afonso Arinos. Como explicar que o racismo ainda atue?
Benedita – É que não basta apenas a lei. Vale lembrar que a Lei Afonso Arinos atenuava; e a Lei Caó torna crime o racismo desde 1988.
Nei – Até a década de 1960, a Polícia do Exército, no Rio, recrutava no sul soldados altos, louros e de olhos claros, aqui apelidados catarinas, para reprimir os soldados comuns, geralmente suburbanos pretos e mestiços. O fator étnico aí entrava como dado de superioridade. Foi uma das práticas mais hediondas do Estado brasileiro. Hoje, coisas tão explícitas não passariam despercebidas. Mas o “racismo amigável” continua, porque a intelligentsia e a mídia colonizadas fazem questão de negar o pluralismo brasileiro.
Thereza Santos
Thereza – De cada cinqüenta processos que abrimos contra discriminação, vencemos um. Pensávamos que a Lei Caó nos daria maior força. Quem aplica a lei em geral é tão racista quanto quem pratica o crime. A Constituição assegura o direito à discriminação e ao preconceito porque assegura que somos todos iguais perante a lei “que não funciona”. Como estratégia, nada mais perfeito.
O que acha da revista Raça Brasil?
Benedita – Importante para o quesito visibilidade, projeção positiva da imagem do negro.
Nei – Veio suprir uma lacuna no mercado editorial. Mas o capital que a mantém não está na mão de empresários negros.
Thereza – É importante na medida em que despertou o orgulho de ser negro. Sem visibilidade, ficamos sem espelho por 500 anos. Mas a revista não possui postura política comprometida com a luta maior. Onde situar a esmagadora maioria? Esta maioria luta pela sobrevivência, pela dignidade e pelo respeito 24 horas por dia. Para compreender a linha da revista, basta lembrar que surgiu sob inspiração da Ebony, editada por afro-americanos republicanos.
As novas gerações se mostram mais politizadas, discutindo de várias formas. Um exemplo é o pessoal do Hip-Hop. Este é um caminho válido?
Benedita – Não há dúvida, a política exercida com ideologia firme, determinada, com transparência, influencia. O Hip-Hop é um movimento cultural e político que está fazendo a cabeça da juventude.
Nei – Apesar das boas intenções, não acho que tenha toda essa importância no aumento da auto-estima.
Thereza – Muito temos aprendido com a juventude. Mano Brown e outros têm sido exemplo a seguir. Trabalham a auto-estima e conscientizam sobre a realidade a que foram relegados.
Funciona a fórmula copiada dos EUA de adotar o sistema de “cotas” para afro-descendentes em universidades, na propaganda e outros espaços?
Benedita – Venho desde 1982 defendendo a posição. Se for copiada dos EUA, não há mal algum, pois o Brasil tem copiado tanta coisa ruim de lá, talvez nisso esteja certo.
Nei – Isso, sim, é importante para a auto-estima. Vendo gente igual a você nas universidades, telenovelas, anúncios, apresentando programas, nas redações, você se anima a lutar pelo seu espaço. Agora, implementar isso deve ser complicado.
Thereza – Consideramos importantes as “cotas”, será a única forma de participação real. Têm de ser vistas como instrumento para diminuir as distâncias entre os grupos raciais, e é a única arma possível dentro da realidade política do Brasil.
Se olharmos para outros países em que houve grande aporte de imigrantes e ao mesmo tempo escravidão, é possível afirmar que o Brasil está mais próximo que qualquer nação de se tornar um “cadinho de raças”?
Benedita – Melhorou a divulgação dos fatos, porém a discriminação sofreu pequena alteração.
Nei – Cuba talvez também esteja. Mas seria bom que, ao invés de cadinho, onde os componentes se fundem, fosse um caldeirão de feijoada, para que o gosto de cada ingrediente pudesse continuar sendo apreciado. Dou valor ao lado africano da minha ancestralidade e não gostaria de perder meu contato com ele.
Thereza – Na Argentina, eliminaram os negros; no Uruguai, quase. Restaram Brasil e Estados Unidos. A identidade lá foi preservada porque o racismo explícito fez com que o afro-americano tivesse consciência da diferença. No Brasil, a situação de igualdade formal, mas não legal, destruiu a consciência e evitou o confronto, porque destituiu o negro dos valores mais importantes do ser humano: sua cultura, seus valores e suas raízes. Não podemos pensar em “cadinho”, a não ser que seja possível criar um “cadinho” com discriminadores e discriminados. Só uma transformação radical com reforma agrária, tributária e de polí-ticas sociais maciça criará condições para a plena participação do negro.
É comum a percepção de que negros são bons de bola e música: seria por natural propensão ou porque são esferas em que têm mais chance?
Benedita – Talento não se faz, é só aparecer a chance que a negrada mostra todo o seu valor em tudo.
Nei – No livro Tabu: Por que Atletas Negros Dominam Esportes e Por que Nós Tememos Isto, o americano Jon Entine conclui que a superioridade é flagrante nos esportes em que barreiras econômicas e sociais são menores; mas que fatores biológicos não devem ser desprezados. A sociedade brasileira delimitou o espaço do negro ao entretenimento, que é para não incomodar. Conheço negro ruim de bola que é craque nas ciências exatas, física nuclear, xadrez. Mas nisso ninguém fala.
Thereza – Como disse o saudoso Talismã no samba: “Negro paga imposto, negro vai à guerra, negro ajudou a cons truir a nossa terra, e no carnaval ele é capitão, ele é general, poderia ser tanta coisa dentro da vida real.” O negro, onde quer que esteja, sabe o caminho.
Só a sociedade continua surda. Aliás, hoje nas escolinhas de futebol só classe média tem chance e nunca a seleção esteve tão branca.
Certos afro-descendentes não gostam de grupos que se fecham em guetos, tais como revista ou clube “só de negros”. Qual a sua posição?
Benedita da Silva
Benedita – Nossos guetos são para nossa sobrevivência, auto-estima, visibilidade positiva, desde a favela ao asfalto, criando mecanismos que ajudem a preservar nossa identidade. Enquanto não chega o sistema ideal de sociedade plural, vamos fortalecer nossos quilombos, guetos ricos embalados pela força resistente dessa gente que quer viver e não ter vergonha de dizer “sou brasileiro”.
Nei – Também não gosto. Mas quando não vejo quase nenhum negro nos teatros, salas de concerto, museus, leilões, exposições de arte, desfiles de moda, restaurantes, aeroportos, tenho de parar para pensar.
Thereza – Existem sim clubes criados pelos negros, mas lá estão os brancos, e por inúmeras razões: exotismo ou consciência, mas também porque têm arraigados na memória os ensinamentos decantados por Gilberto Freyre: potência, tamanho, sensualismo. Para nós a participação de não-negros nas nossas entidades nunca gerou problema.
Mas onde está o negro nos clubes brancos? E não existe publicação voltada para a comunidade afro-descendente que se preocupe também com educação, saúde, moradia, emprego. Está na hora de buscarmos maior percepção da realidade do negro para descobrir que na verdade sobrevivemos neste imenso gueto branco que é o Brasil.
Revista Illustrada de Ângelo Agostini
A bíblia da abolição
“A arte da caricatura só começou verdadeiramente a germinar entre nós com a presença de Ângelo Agostini”, escreveu Monteiro Lobato.
Um dos mais criativos e combativos jornalistas da história da imprensa no Brasil, o italiano Ângelo Agostini (1843-1910) foi defensor da abolição da escravatura. Estudou na França e, em 1864, fundou o Diabo Coxo, em São Paulo. Pelas idéias liberais, antiescravistas e republicanas, tornou-se, em pouco tempo, alvo dos conservadores. Perseguido, mudou-se para o Rio. Em 1876, funda a mais importante publicação brasileira das últimas décadas do século 19: a Revista Illustrada, que manteve durante 15 anos.
Pelo entusiasmo com que defendeu os ideais abolicionistas e republicanos, recebeu consagração dos círculos liberais. Em homenagem pública, o orador oficial, Joaquim Nabuco, disse que a Revista Illustrada havia sido a Bíblia abolicionista do povo que não sabia ler.
Elifas Andreato é desenhista e editor do Almanaque Brasil.
Somos todos afro-brasileiros
Podemos ser brasileiros de primeira geração, filhos de pais vindos do Minho, da Toscana ou da Calábria, da Baviera, de países eslavos, escandinavos ou árabes, do Japão ou de outro país do Extremo Oriente. Embora nenhuma gota de sangue de raça negra circule em nossas veias, ainda assim somos afro-brasileiros.
Porque a cultura brasileira inclui fortíssimo componente de ascendência africana. Esta cultura, o ar espiritual que respiramos e que, em todos os meios sociais, nos educa e forma nossas personalidades, não pode deixar de nos impregnar de variadíssimos elementos africanos abrasileirados.
Africanizam-se os nossos sentidos. A estética visual se orienta para formas negras e para os coloridos da preferência do olhar africano. É só observar a pintura, a escultura, todas as artes plásticas. É só refletir sobre os motivos de atração sexual, sobre os padrões eróticos, conscientes ou inconscientes, de homens e mulheres do Brasil.
Que dizer, então, de nossa estética auditiva? Os ritmos e as melodias, que estruturam o gosto musical dos brasileiros de todas as regiões, foram criados por descendentes africanos. Ritmos e melodias dominantes da música popular e inspiradores da música erudita. E se falarmos do paladar? Podemos apreciar comovidamente a cozinha italiana, árabe ou japonesa, mas infalivelmente prestamos tributo à genialidade criativa das cozinheiras cor de ébano, que inventaram pratos e doces de sabor maravilhoso, misturando a experiência africana aos ingredientes nacionais. Nosso paladar é afro-brasileiro.
Diz-se que o Brasil é um país de imigração. Afora os quatro milhões de estrangeiros residentes no País, algumas dezenas de milhões são brasileiros de primeira ou segunda geração. Em muitos casos, seus ancestrais emigraram porque viviam em condições difíceis em sua terra natal, porque sofriam perseguições religiosas, raciais ou políticas. Voluntariamente, escolheram o Brasil porque aqui esperavam reconstruir suas vidas na paz e na felicidade.
Os africanos foram os únicos trazidos ao Brasil pela força mais brutal: acorrentados, marcados a fogo, jogados nos infectos porões dos navios-tumbeiros. Em vez de escolherem o Brasil, foi o Brasil que os escolheu. Aqui, milhões de negros escravizados não esperavam a paz e a felicidade, mas a vida infernal no cativeiro dos engenhos de açúcar e das minas de ouro.
Nas condições mais adversas da escravidão – forma fundamental do trabalho durante três séculos -, os africanos e seus descendentes souberam resistir e preservar sua dignidade de seres humanos. Construíram o Brasil sem se deixarem destruir. Mostraram admirável plasticidade ao assimilar a cultura luso-brasileira de origem européia, mas introduziram nela sua riquíssima contribuição original. Graças a isto, o Brasil é um dos países mais multiculturais do mundo. Um país em que as matrizes culturais se fundem sem coações e no qual cada uma delas pode conservar sua identidade e se desenvolver criativamente.
A extinção da escravidão eliminou o grande obstáculo que impedia a difu-são do trabalho livre e afastava do Brasil as correntes da imigração de trabalhadores europeus. A Abolição possibilitou a industrialização, a urbanização, a expansão demográfica. A Abolição abriu caminho ao Brasil mo derno, cheio de contrastes às vezes chocantes, mas já uma potência econômica e política emergente.
Contudo, os brasileiros de ascendência africana ficaram à margem dos aspectos vantajosos deste progresso. A escravidão se associava ao racismo, ao preconceito anticientífico sobre a inferioridade intelectual do negro. A Abolição eliminou a escravidão, porém não eliminou o racismo. O preconceito racial difuso contra o negro continuou a se traduzir em formas objetivas de discriminação social. Os brasileiros de ascendência africana engrossam os estratos da população de mais baixa renda, de menor grau de instrução e de inferior qualificação profissional. Um círculo vicioso: a pobreza acentua o preconceito e o preconceito acentua a pobreza.
É preciso quebrar o círculo vicioso. Negros e brancos devem unir-se para impedir as práticas objetivas da discriminação racial e combater, por meios educativos, o preconceito ostensivo ou encoberto. O Brasil não pode prescindir da plenitude do talento de milhões de homens e mulheres que orgulhosamente exibem os traços físicos da raça mais antiga da espécie humana.
Jacob Gorender é historiador baiano, autor de dois clássicos da historiografia brasileira, O Escravismo Colonial (Ed. Ática) e Combate nas Trevas (Ed. Ática).
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