Entrevistas

Ricardo Coimbra: “Nem a esquerda e nem a direita defendem integralmente a liberdade de expressão”

Seja o moço branco progressista que vai ao Poupatempo pleitear seu “novo lugar de fala” ou o paulistano pró-ativo encantado em criar startups, pouca gente escapa do deboche do cartunista Ricardo Coimbra. Ele carrega a tinta contra os pequenos ridículos da esquerda e da direita. Mas logo esclarece: “Tenho bode de política. De 2013 para cá, porém, é impossível fugir do tema”.

É incomum, de fato, suas tiras tratarem das lideranças políticas nacionais. Prefere apontar a caneta para os sujeitos que usam o tema para conquistar vantagens em mesa de bar ou para parecer mais nobres nas redes sociais. Para ele, as pessoas andam escolhendo o posicionamento político apenas por estética, pelo que combina mais com a imagem que pretendem passar. “É algo mais interessante e mais rico [para se desenhar] do que essa coisa maniqueísta de bem e mal que o debate político tenta implantar”, afirma.

Desde 2009 publicando seu trabalho na internet e autor de Vida de Prástico (Gato Preto, 2014), uma compilação de sua obra, Coimbra diz ter aprendido também que o humorista não deve se preocupar em buscar o respeito dedicado a outros gêneros artísticos. Mesmo que sua conta bancária seja uma das mais prejudicadas por essa visão. O melhor jeito de se fazer humor, em suas palavras, é se o público considerar de antemão que o sujeito seja um idiota. Só assim se consegue surpreender o leitor.

Nesta entrevista, o cartunista mineiro radicado em São Paulo revela como o momento político e social influencia sua criação e aponta que qualquer lado político erra ao não se posicionar totalmente a favor da liberdade de expressão. “É fundamental defender integralmente a liberdade de expressão. Quando você a defende para o Danilo Gentili, você a defende para os artistas do Queermuseu.”.

Como criou seu ritmo de humor nos quadrinhos?
Para ser sincero, vivo numa crise. Comecei a publicar na internet em 2009, e acho que esgotei tudo o que eu tinha para falar no primeiro ano. Estou desde então me repetindo. Me sinto absolutamente repetitivo e pouco criativo. Nesse tempo de trabalho peguei uns cacoetes – o que algumas pessoas chamam de estilo. Tenho meus personagens: a menina da tatuagem de mandala, o cara da tiarinha no cabelo, o gordinho da bochecha rosada, as piadas com a galera de humanas. Meu trabalho é muito derivativo. Eu copio muita gente o tempo inteiro.

Quem, por exemplo?
Laerte, Angeli, Allan Sieber, André Dahmer. Faz quase 10 anos que estou copiando essa turma. Mas é como o Arnaldo Branco diz: “O segredo é copiar muita gente o tempo inteiro. Assim fica difícil de detectar o plágio”.

O pessoal curte a garota da tatuagem de mandala, não?
Ela ganhou notoriedade porque é um personagem que existe aos montes em qualquer faculdade de humanas ou em galerinhas secundaristas mais hippies. Há, porém, um detalhe importante. Talvez pelo meu tom pode parecer que eu esteja sendo sarcástico ou cruel. Nada disso. Tenho muita ternura pelos meus personagens. Ouço o Laerte ou o Angeli dizerem que se cansaram de seus personagens. É interessante ver a diferença deles para mim. Eles são gênios. Eu, como sou medíocre, preciso dessa estrutura de personagens que andam praticamente sozinhos. Gosto muito de todos.

Você costuma tirar um sarro dos estereótipos da esquerda. Por quê?
A esquerda perdeu a capacidade de lidar com a esculhambação. Na minha visão romântica de estudante secundarista, saber lidar com a avacalhação era o que me atraia para a esquerda. Porém, mais recentemente, está rolando uma coisa um pouco estranha: a galera da esquerda passou a ficar meio moralista, meio parecida com o pessoal da direita. Gosto de lembrar sempre da frase do Millôr: “Não gosto da direita porque ela é de direita, e não gosto da esquerda porque ela é de direita”.

A galera da esquerda passou a ficar meio moralista, meio parecida com o pessoal da direita. Gosto de lembrar sempre da frase do Millôr: “Não gosto da direita porque ela é de direita, e não gosto da esquerda porque ela é de direita”.

Você trata muito de política em seus quadrinhos, mas dedica atenção especial aos tipos sociais do cotidiano. É por aí?
Sou identificado como um cartunista que fala de política. Mas tenho bode de política. De 2013 para cá, porém, é impossível fugir do tema. Quando uma pauta fica muito onipresente, tento sair dela, só de sacanagem. Então falo dos pequenos ridículos relativos a uma visão política. Há uma galera na internet que perde um pouco a noção de que está indo como rebanho em direção a uma pauta só. Tenho um amigo que me zoava quando estava rolando o papo do museu: “O Brasil pegando fogo e você fazendo tirinhas sobre penteados escrotos?”. Fico incomodado com a pauta hegemônica.

Como vê o aumento dos debates políticos no País?
Não tenho nada contra o ativismo. Lógico que ele pode ser muito importante. Mas o debate político passou a ser basicamente estético, a passar claramente por estética. A gente vive uma época em que as pessoas escolhem a religião, a linha ideológica e o partido por aquilo que orna melhor com a imagem que querem passar. Todo mundo tem uma imagem pública em época de rede social. Todos precisam pontuar e ter uma opinião sobre qualquer assunto. Se perdeu a espontaneidade da conversa. As pessoas criam uma imagem e ficam presas nela.

Elas passaram a ter uma “imagem institucional”, então?
Total. As pessoas são mini-empresinhas. E isso, para mim, é um aspecto político mais interessante do que a política institucional, do que simplesmente falar do “fora, Temer”. Eventualmente, falo do Temer, da situação política, faço minhas crítica-social-foda também. Mas há uma política mais existencial, de como você se coloca no mundo. É algo mais interessante e mais rico do que essa coisa maniqueísta de bem e mal que o debate político tenta implantar. O maniqueísmo não me interessa.

Sem entrar no mérito de quem está certo, se percebe uma ofensiva nos últimos anos da esquerda contra os humoristas e da direita contra as exposições de arte. Como observa esse cenário?
Todo grupo político quando perde o debate principal ao qual se dedica começa a falar de policiamento da linguagem. A esquerda perdeu claramente o debate econômico, então começou a falar de liberdade de expressão, que é o reino da subjetividade em que gente de humanas consegue apitar alguma merda. Do outro lado, o MBL se postou como a imagem da racionalidade política, da moralidade contra a corrupção, e, assim que a Dilma caiu, mostrou a verdadeira face oportunista e defensora de corruptos, como a galera que defendia o PT e que eles chamavam de de defensores de corruptos. Quando não conseguiu explicar por que eles passam pano para o Dória ou para o Temer, o que eles fazem? “Vamos falar de museus”. A verdade é que ninguém gosta de liberdade de expressão. Ninguém.

Como assim?
Liberdade de expressão é a primeira coisa que se rifa quando precisa fazer barganha política. Os grupos políticos se valem dessa má-fé porque quase todas as pessoas dizem: “Eu amo a liberdade de expressão”. Todo mundo, porém, tem uma ressalva.  Nem a esquerda e nem a direita a defendem integralmente. A esquerda vai falar que não pode discurso de ódio. A direita que não pode falar de Jesus ou que não pode nudez. Outro vai falar que não pode falar mal do Corinthians, outro que não pode falar mal da sua avó. Ao fim, computadas as ressalvas de cada um, não sobra liberdade de expressão alguma. Liberdade de expressão é defender o direito, por exemplo, do Danilo Gentili ser um escroto. Não se está defendendo o que ele está dizendo, mas defendendo o direito dele ser como quiser. A mesma engenharia discursiva que se usa para proibir o Danilo Gentili de falar é a que vai proibir a pessoa de fazer uma exposição. Sem tirar nem pôr. É fundamental defender integralmente a liberdade de expressão. Quando você a defende para o Danilo Gentili, você a defende para os artistas do Queermuseu.

Há cartunistas que pleiteiam que a profissão deve ser tratada com mais respeito pelo mercado editorial. Como entende essa visão?
A galera está querendo muita respeitabilidade. O humor sobrevive de pegar as pessoas de surpresa. Se você esperar sempre que eu vá falar alguma coisa inteligente não há possibilidade humorística. Você tem que me considerar um idiota para de uma hora para a outra eu fale alguma coisa que te pegue de surpresa. Claro que entendo por um lado. Tem pessoas que trabalham e precisam ganhar a vida com essa merda, e a respeitabilidade da linguagem tem a ver com isso, ser mais respeitado pelo mercado editorial, conseguir publicar seu trabalho, conseguir ser bem pago. Mas o cartunista e o humorista têm que tomar cuidado para não virarem uma instância de cagação de regra. O humor tem que ser o comentário a respeito de uma cagação de regra. Não ser a cagação de regra.

Aprendeu a ganhar dinheiro com cartuns?
Claro que não. Ganho mais dinheiro com publicidade, com ilustração editorial. A vida de cartunista é um inferno.

Qual sua tira de maior sucesso?
Foi uma das primeiras que fiz. Era a de um adolescente reclamando aos pais que não queria ter nascido. Então vem um raio e fulmina o garoto. De repente, volta a crescer cabelo no pai, as estrias da mãe somem, a carteira volta a ter dinheiro. Eu encontrei essa tira em espanhol, inglês e até em cirílico, num site russo. É um registro de algo universal. Tenho vontade de falar mais sobre temas universais.

Quais são seus três cartunistas brasileiros preferidos?
O Millôr, pelo que fez nos quadrinhos e pelo conjunto da obra. Depois, o Laerte, uma referência incontornável. Por fim, foi mal, mas vou incluir um português: José Carlos Fernandes, o maior quadrinista mundial de todos os tempos.

Não tem ninguém melhor [na minha geração] do que a Alexandra Moraes. Ela tem um texto afiadíssimo, e compreendeu o que todo cartunista deveria saber: o importante não é desenhar bonito, mas o desenho funcionar bem.

E os três melhores da sua geração?
Não tem ninguém melhor do que a Alexandra Moraes, autora de O Pintinho. Ela tem um texto afiadíssimo, e compreendeu o que todo cartunista deveria saber: o importante não é desenhar bonito, mas o desenho funcionar bem. O desenho tem que ser o escravo da ideia, e não o contrário. O segundo é o Mauro Albano, do Wagner e Beethoven. Há também um moleque novo que se chama Victor Bello, autor de Feto em Conserva. Ah, gosto do Andrício de Souza também.

2018 vai ser bom para trabalhar?
Há amigos que dizem que nada melhor para um humorista do que viver em uma época ridícula. Eu penso o contrário. Nada pior do que ter a competição com a realidade. É impossível competir quando há uma eleição para presidente em que uma das opções pode ser o Doctor Rey.

Como deseja ser homenageado em cartuns quando morrer?
Tenho dois amigos que me ameaçam dizendo que a primeira coisa que farão é uma caricatura minha com uma asinha de anjo entrando no céu. Há um tipo social específico que é o cartunista de obituário. Ele parece que fica esperando uma pessoa famosa morrer só para colocar as asinhas de anjo. Tomara que eu seja retratado assim (risos).

Por Bruno Hoffmann