Não é de hoje que os rappers nacionais misturam o estilo com ritmos brasileiros e estrangeiros. Poucos, contudo, chegaram à sofisticação de Rincón Sapiência. Ele até batizou um novo gênero musical, o afrorap, que dá o conceito a Galanga Livre, seu álbum de estreia, lançado pela Boia Fria Produções.
Antes, como boa parte dos artistas de rap, teve que se esforçar para ter seu lugar ao Sol. Foi criado na Cohab 1, conjunto habitacional popular de Artum Alvim, na Zona Leste de São Paulo. Em 2009, com quase 10 anos de carreira, ainda dividia os microfones com os telefonemas numa central de telemarketing. Só surgiu ao País com o clipe Elegância, um tratado divertido e provocativo sobre auto-estima e moda de periferia.
Nesta entrevista para o Almanaque, Rincón, 32 anos, explica a relação entre o rap e o funk, fala com entusiasmo sobre as mudanças comportamentais trazidas pelas novas gerações e conta como criou o conceito do afrorap a partir de estéticas já existentes no País. “O Brasil é o país fora do continente africano que mais tem pretos no seu território. Quando eu chego ao Brasil essencial, eu chego à África”.
O que ouvia quando era criança, na Cohab 1?
Eu já me influenciava pelo black americano, principalmente Michael Jackson. Depois vieram as músicas de quebrada: o pagode, a música baiana, como É o Tchan, o rap e até o rock. Eu curtia bandas como Chico Science e Nação Zumbi, Planet Hemp e Rage Against the Machine. Tudo isso foi se formando, ao mesmo tempo, na minha cabeça. O Xis me influenciou decisivamente para eu ser um rapper. O meu primeiro rap foi uma versão de Us Mano e As Mina.
Como se deu a decisão de seguir carreira artística?
Eu queria ser meus ídolos, mas ainda era algo ainda muito distante. É difícil convencer as pessoas e até a si mesmo. Porém, fui fazendo, e, desde que montei a minha primeira banda, não parei mais, mesmo trabalhando ao mesmo tempo numa central de telemarketing. Em 2009 minha carreira começou a rolar de forma mais interessante. Antes, eu fazia algo como cinco shows por ano. Então eu passei a fazer pelo menos um por mês. Recebia em um show o que costumava ganhar em um mês no telemarketing. A cabeça já estava mais fértil para eu dar uma diretriz profissional à minha carreira artística.
O lançamento do clipe Elegância, em 2010, te colocou de vez aos olhos do público, não?
Foi quando eu passei a ver a possibilidade de viver apenas de música. Então eu me joguei. Essa música é bem especial. A partir daquele momento, eu e alguns outros artistas passamos a fazer um texto sobre a auto-estima negra um pouco diferente do que era feito antes. Eu faço parte de uma vanguarda que se propôs a ter novas linguagens e discursos.
Como assim?
Elegância não tem sample, diferentemente de 80% ou 90% dos raps que eram feitos até então, mas um timbre digital e um lance mais eletrônico. Ela acabou sendo uma vanguarda estética no rap, se baseando um pouco no que era feito no sul dos Estados Unidos. Outro lance é que essa música trouxe um novo olhar para a moda. A moda está na raiz do movimento hip hop, mas, no Brasil, ninguém tinha assumido até então a relação entre rap e moda tão diretamente como eu fiz. Elegância me abriu muitas portas.
O rap feito na década atual tem uma linguagem mais leve do que o dos anos 1990. A que se deve essa transformação?
Os anos 90 era uma época bem mais ácida, não só no Brasil como no mundo todo. O grupo que fazia sucesso nos Estados Unidos era o Public Enemy, com suas letras politizadas. A moda também era bem mais básica: muito jeans e xadrez. Há ainda a questão econômica. Naquele tempo, o morador de periferia vivia uma realidade muito mais escassa, mais marginalizada e mais isolada do que hoje. A gente ocupava menos espaços. As coisas mudaram. Quando eu lancei Elegância, os mais pobres já consumiam mais. A quebrada estava almejando usar roupas melhores, perfumes melhores, ser mais vaidosa. A auto-estima havia se transformado completamente. Hoje, após golpe político, vivemos um momento oposto em relação a auto-estima…
É neste momento que o funk começa a se tornar popular em São Paulo. Há uma relação?
Total. O funk em São Paulo por muito tempo foi música de verão, meio lado B. Só se ouvia os funks de favelas do Rio, além de sucessos nacionais como Bonde do Tigrão e Dança da Motinha. Era muito louco, dancei muito nas festas. O funk se instalou de vez na cidade quando veio com a ostentação do carrão, do perfume da hora, do cordão de ouro. O funk contemplou muito a quebrada porque tem os mesmos signos do rap, mas o rap é um pouco cabeçudo, tem um texto mais complexo. E essa geração não estava disposta a dizer “não vou assistir futebol porque é alienante”, “não vou ligar a televisão”. A geração que levantou o funk em São Paulo é mais desprendida e solta do que era a nossa, mais dogmática, do “você está no rap então tem que fazer isso, tem que ter lido aquilo” e tal.
Ainda há uma aversão dentro do rap em relação ao funk?
Um pouco. Até aconteceu uma coisa curiosa comigo. A única vez que fui vaiado em cima do palco foi em 2011, em um show com outras bandas na quadra da Tom Maior. Nesse dia eu estava com uma calça laranja, uma camisa amarela e um moicano amarelo. A abertura da minha apresentação era uma música de funk chamada Liberta. Passaram-se os anos e hoje todo mundo bate palma para o rapper ter seu swag [estilo], uma identidade visual legal. Hoje, misturar o funk com o rap se tornou uma coisa mais bela. Eu poderia ter desencanado de fazer essa mistura, mas eu sempre acreditei que era uma questão de tempo. A geração nova é bem mais resolvida do que a minha.
Como você entende essa nova geração?
Ela é, em geral, bem articulada político e socialmente, mas bem mais resolvida em alguns detalhes. Por exemplo, é normal haver uma garota engajadíssima em questões raciais e no feminismo e ela ir para o baile balançar a raba e tomar catuaba numa boa. Isso tem a ver com a autonomia sobre o próprio corpo. Se alguém abordar essa garota de forma de deselegante, vai tomar uma carcada pesada. Não é porque ela está rebolando que está disponível. O mesmo acontece com o público LGBT. As minas com as minas, os caras com os caras, todos se divertindo. Aí você para para conversar com essas pessoas e elas têm ideias ótimas sobre a sociedade. Essa forma de ser é um protesto também, mas por outras vias que ainda não tinham sido exploradas, não eram discutidas antes.
Nós somos o país fora da África com mais africanidade, com mais pretos no mesmo território. Há samba, ciranda, maracatu, jongo, congada, candomblé, umbanda, capoeira. Quando eu chego ao Brasil essencial, eu chego à África.
Como criou o conceito de afrorap?
Nós somos o país fora da África com mais africanidade, com mais pretos no mesmo território. Há samba, ciranda, maracatu, jongo, congada, candomblé, umbanda, capoeira. Quando eu chego ao Brasil essencial eu chego à África. O brasileiro gosta muito de dançar, e o que nos leva a dançar é nossa ascendência africana. Rappers norte-americanos, como Wu-Tang Clan, soam secos ao que estamos habituados. Eles misturam o rap com o jazz e o funk, que eram as músicas de seus pais e avôs, mas nós temos muito mais possibilidades. Eu bebo da fonte dos Estados Unidos, das tendências mundiais, mas meu lance é africanizar tudo o que recebo. A gente pega o trap e coloca o samba, pega o bass music, com grave pesado, e põe a ciranda, e vira Moça Namoradeira. O meu conceito de fazer rap passa sempre pela música afro. E, por consequência, pelo Brasil.
Você conquistou neste ano três prêmios do Multishow, entre os quais o de Artista Revelação. O rap já é aceito pelo grande público?
Essa carteirada já foi dada. Há algum tempo os artistas de rap têm feito obras grandiosas, e eu teria a ousadia de me colocar nesse grupo. Faço parte de uma coisa bem interessante que está acontecendo na música brasileira, de conquistar maior representatividade por meio do rap.
Eu pego o Uber, entro no comércio, e ouço Projota, Rael, e fico muito feliz. Mas seria mais legal ainda se tivessem várias músicas de rap tocando nas rádios. Estamos no caminho. É uma questão de tempo.
O que falta para o rap ?
Um pouco de fortalecimento interno da cena. Há artistas fazendo trabalhos bons e ganhando dinheiro de forma isolada, como eu, Emicida, Projota, Criolo, Rael, Froid, entre outros, mas eu queria ver um festival grande apenas com artistas de rap. Eu pego o Uber, entro no comércio, e ouço Projota, Rael, e fico muito feliz. Mas seria mais legal ainda se tivessem várias músicas de rap tocando nas rádios. Estamos no caminho. É uma questão de tempo.
Por Bruno Hoffmann