ADÉLIO PRADO

“Sem poesia corremos perigo”

{janeiro de 2006}

Não por acaso, o verbo alemão para “poetar” se pode traduzir por “condensar”, como anota em ABC da Literatura (Cultrix, 1990) o poeta americano Ezra Pound (1885-1972). Adélia Prado aplica também à prosa a concisão que leva à revelação da essência. Aceitou, por isso, conceder-nos entrevista sob a condição de que se desse por escrito. Melhor para os leitores: as respostas vieram no texto enxuto de Adélia, belo, poético – essencial. A poeta mineira, nascida em Divinópolis em 1935, acaba de publicar Quero Minha Mãe (Record, 2005), seu 23º livro e o oitavo em prosa. Com poesias publicadas em inglês, italiano e espanhol, no recente livro trata tema enigmático para a literatura e para a própria vida: uma mulher reflete sobre a proximidade da morte, ela que muito jovem perdeu a mãe. Com permissão de Adélia, completamos seu pensamento com poemas dela e prosas poéticas de Quero Minha Mãe.

Adélia: "Ao poeta cabe o poema. é seu ofício. Não é sofrido, é prezeroso. O que dói é a vida."

Em recente entrevista à Folha de S.Paulo, você diz que acredita “na extraordinariedade do ordinário”. A literatura pode transformar o trivial em eterno? Como de um gesto do cotidiano se faz poesia?
Só possuímos o cotidiano, o prosaico, o ordinário, mas é dele que se depreende o transcendental. Não só a literatura faz isso, mas qualquer arte verdadeira. Como isso acontece, não sei dizer, trata-se do mistério da criação.

Você compara a experiência poética à experiência religiosa. Em que medida se pode dizer que elas buscam o mesmo? A poesia é uma espécie de oração?
Na medida em que ambas nos conectam a um centro de significação não racional. Isso é religioso. A poesia é oração como um salmo é poesia.

Você acredita que a poesia tem algum papel, alguma missão perante o mundo?
Ela tem poderes e não missão. Missão seria engajamento.

Quando a poesia toca as pessoas, pode provocar mudanças?
De que tipo?

Ser tocado pela poesia é ter uma chance de mais humanização. Ficamos mais ricos e muitas vezes mais compassivos, mais felizes.

Acha que o leitor mudou desde o início de sua carreira?
E os escritores?

Somos filhos do tempo, mas não sei precisar onde eventualmente tenhamos mudado. As paixões humanas que geram a arte continuam as mesmas, logo…

Qual é o papel da mulher em sua obra? Quando ela se faz presente, você se refere a suas próprias experiências ou às de terceiras?

Quando escrevo, não penso em papéis. Escrevo para exprimir experiências e sentimentos que, se forem arte, deverão corresponder ao sentimento coletivo.

E mais: qual o papel da mulher na construção
do mundo?

Primeiro, realizar o feminino em si mesma. Daí decorre o resto.

Como é seu processo de criação? Muito sangue e suor? A placidez de sua poesia não deixa transparecer um processo árduo, sofrido. Fazemos a pergunta pensando em A Procura da Poesia, de Drummond:
Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
São imagens tão “Adélia Prado”… Será apenas imaginação ou também seu processo de criação é plácido? Você considera a descrição da “procura da poesia” de Drummond compatível com seu trabalho?

Drummond, pra variar, está certo. Sangue, suor e lágrimas é para arrancar pedras ou para a guerra. O esforço por si não produz nada. A poesia é oferecida a todos; ao poeta cabe o poema. É seu ofício. Não é árduo nem sofrido, é exatamente prazeroso. O que dói é a vida.

O sempre amor
Amor é a coisa mais alegre
amor é a coisa mais triste
amor é coisa que mais quero.
Por causa dele falo palavras como lanças.
Amor é a coisa mais alegre
amor é a coisa mais triste
amor é coisa que mais quero.
Por causa dele podem entalhar-me,
sou de pedra-sabão.
Alegre ou triste,
amor é coisa que mais quero.

Bagagem (1976) 

Dia
As galinhas com susto abrem o bico
e param daquele jeito imóvel
– ia dizer imoral –
as barbelas e as cristas envermelhadas,
só as artérias palpitando no pescoço.
Uma mulher espantada com sexo:
mas gostando muito.

O Coração Disparado (1978)

O lugar da necrópole
Há quem tendo cantado e batido os
[dentes do copo
já morreu.
Há quem tendo falado suas dores secretas
está hoje selado sob lápides,
excrescendo sobre mim o seu fantasma
de pessoa verdadeira, rebelada,
de pessoa poética.
Na juventude me comprazia o fúnebre,
as faces lívidas dos poetas doentes.
Hoje, só preciso da vida pra morrer.
Nas metrópoles,
o campo-santo acaba confundido,
rodeado de bares.
E por causa disso iludem-se as pessoas
de ter nas mãos a indomesticável.
O cemitério quer ladeira e montes
para os quais se olha ao entardecer:
um dia estarei lá,
lá longe,
no incontestável lugar.

Terra de Santa Cruz (1981)

O destino do alvissareiro
O poeta sofre o ridículo
de passear na cidade
com a coroa de louros.
Salve, ‘cantor das multidões’!
Assim lhe saúda o tolo,
com picardia e desdém.
Amém, ele responde, amém, amém,
desespero impossível,
amor não correspondido,
ainda assim, amém,
cruz sobre terra plantada.
Eis que os ossos são brancos,
eis que são belos também,
eis que este anúncio me mata
e esta grande dor me confina,
mas ainda que o mundo acabe
esta canção não termina.
A Faca no Peito (1988)

Pode nos confessar qual o seu poema preferido, do qual mais se orgulha de ter feito?
Não há orgulho, mas alegrias. Alguns me surpreendem mais e não me lembro agora.

Qual o papel que a leitura – não a escrita – tem em sua vida?
Papel de alimento.

Recentemente, numa entrevista, Lygia Fagundes Telles defendia veementemente que era chegada a hora de o Brasil receber um Prêmio Nobel de Literatura. Quem, na sua opinião, mereceria um Nobel por aqui?
Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Drummond, antes de quaisquer outros.

Sobre Quero Minha Mãe, como você definiria para os leitores o livro e sua intenção ao escolher o tema?
Não escolhi o tema. O tema aconteceu. Acho que se trata de um encontro.

Recentes pesquisas apontam que o número de leitores está aumentando no Brasil. Os livros mais vendidos são em prosa, assim como os seus mais recentes. Há espaço para a poesia hoje?
Claro. Sem a poesia corremos perigo. Estamos famintos de transcendência e a própria fome nos leva a buscá-la, abrir picadas para que ela venha.

Como é a sensação posterior ao lançamento de um livro? É uma espécie de pós-parto? Há depressão ou só afeto, alegria?
Alegria. Livro não dói igual parto.

Há quem ligue os cabelos brancos à velhice; e velhice a algo que deve ser escondido – talvez porque revele, diante do espelho, a proximidade da morte. Você não pintou os cabelos, nem os domou em coques ou outros subterfúgios. Seus cabelos dizem de sua personalidade?
Dizem de uma preguiça muito grande. Adoro coques e os faria se tivesse cabelos compridos. É um sonho meu. Personalidade? Nem minha letra tem estilo permanente ainda.

O que considera a maior descoberta de sua vida?
Ainda não posso falar dela.

Trechos de Quero Minha Mãe:
A Ivonete está quase gritando: ‘Ai, Senhor, liberta o coitadinho.’ Entrou pela porta da cozinha e se perdeu atrás da geladeira, aprendendo a voar, o filhote de passarinho. A mãe, louca, piando em volta e trazendo comida, sem sucesso, uma zoeira os dois. Abel arrastou a geladeira e pôs o filhote na grama, a mãe veio doida atrás e os dois sumiram. Graças a Deus, falou a Ivonete, como é que tem gente que não olha os filhos, se até bicho-mãe cuida da cria. (p. 13)

Quando ajudei minha mãe a morrer, era a mocinha que escondia o coração aos arrancos, por causa dos engenheiros bonitos que na ferrovia em obras pediam água em nossa casa. Reza, filha, e toma conta da Joana. De nós todas, penso que a mais órfã é Graça, a mais maternal, a mais sábia, a que tem de nossa mãe apenas a imprecisão de um vulto. Mãe, quantas vezes te vi alegre sem ser por gosto da tristeza? Quando a senhora pedia meu lápis de cor, pegava-os de um jeito que eu queria esconder-me, fugir da sensação esquisita de prazer pagão desagradando a Deus. Só goze a festa em suas providências. Começou o baile? Já chega, dançar também já é demais. Eu, Graça e Joana fomos afetadas e, ainda que loucas pra namorar e casar, demoramos a nos tornar mulheres comestíveis. (p. 27)

Já mocinha, olhava minha mãe limpar um frango, estava calma e doce. Descansou a faca na mesa, pôs a mão na minha cabeça e me falou ensinando como boa mãe: olha aqui, Pia, um frango bem picado, contando com os pés e a cabeça, dá vinte e um pedaços. Achei que éramos especiais, pois, sendo então uma família de sete pessoas, cabiam a cada um três pedaços exatos. Minha mãe me quer. (p. 77)

Da Redação
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