108 – Abril de 2008

Piranhas

Parceira do tempo

Texto e fotos de Heitor e Silvia Reali


ESTAÇÃO CENTRAL: SÓ FALTA O APITO DO TREM E A FUMACEIRA BRANCA.

Cravejada nas montanhas, às margens do Velho Chico, a cidade alagoana tem casario de cores vibrantes, canoa de tolda e bordadeiras caprichosas. Carrega o peso do nome – não mais do feroz peixe, mas da valentia histórica de ter despachado o Cangaço.

Praça central. No coração da cidade parece que os moradores souberam dar cabo no tempo. Quase só falta ouvir o apito do trem chegando e a fumaceira branca arremedando nuvem. A Estação, bonita que só, está ali há poucos passos da praça. Com suas portas encimadas de arcos, toda enfeitada de frisos brancos, lambrequins como franja do telhado, a torre do relógio e o solene portal com nome em relevo – Piranhas. No andar de cima, os balcões têm gradis de ferro e vitrais coloridos que, dizem, vieram de Murano, ilha de Veneza. A Maria Fumaça fazia o transporte de sal, mantimentos e tecidos, de Petrolândia a Piranhas, mas conta-se que andava contando os passos. Os passageiros tinham tempo de descer dos vagões em movimento, colher umbus e voltar a seus lugares, lambuzados da miúda e saborosa fruta. Pedro II chegou à cidade muito antes do trem, colhendo aplausos. Desembarcou do navio Pirajá, em 1859, ao som da fanfarra e achando tudo uma boniteza. Ia elogiando, e o séqüito atrás, anotando para virar nome. Assim foi, por exemplo, com o município vizinho: “Oh! Que belo lugar entre montes”, teria dito. E Entremontes fi cou. Piranhas teve batismo menos nobre. Segundo relatos do naturalista francês Castelnau, a espécie do peixe era “tão abundante e bravia a jusante, a ponto de motivar o nome da localidade”. O intrépido francês deixou ainda um registro sobre a fama da piranha: A caçada da onça é sempre divertimento, o combate ao jacaré, um simples passatempo, o encontro com as serpentes venenosas é um acontecimento diário, mas falai-lhes de piranhas e vereis que seu rosto se contrai exprimindo horror. Toujours les piranhas! As feras aquáticas não eram menos temidas que os cangaceiros. Lampião nunca invadiu a cidade por conta do respeito à sua madrinha, Nossa Senhora da Saúde, padroeira de Piranhas. Mas azucrinava tanto naquele sertão que a volante fazia tempo estava ali em seu encalço.

Os últimos dias de Lampião

 

Era um junho de 1938, dia de mercado na cidade. À praça central chegavam produtos de toda redondeza: madeira, frutas, queijos, farinha, doces, cachaça, o brim azulão para as fardas da volante e dos cangaceiros, sandálias de couro de bode e chapéus. Abarrotavam navios, lanchas e, principalmente, canoas de Tolda. Existiam cerca de 600 dessas embarcações, com duas velas de desenho asiático e um grande leme lateral. Iam pelo Velho Chico, transportando sacas de mercadorias e passageiros, que podiam dormir sob o toldo de madeira. Serviam-se refeições a bordo, como a feijoada de canoeiro, regada com a Teimosa, uma cachaça sergipana de Propriá. Lampião e seu bando chegam a Angico, propriedade do coiteiro Pedro de Candido, homem de confi ança. A fazenda fi – ca às margens do São Francisco, a nove quilômetros de Piranhas. Lampião pede a outro coiteiro, Antonio da Piçarra, que lhe compre em Piranhas rapadura, queijo do reino – cuja embalagem de lata virava prato –, tecido para as fardas e suculentas melancias. Antonio ia comprando e estocando a mercadoria no mato para mais tarde levar à grota que escondia os cangaceiros. Mas a abastança chama a atenção do sargento Aniceto, que manda o célebre telegrama ao delegado de Piranhas: “Boi no pasto. Venha urgente”. No sábado de madrugada, o bando foi surpreendido pela volante, armada até os ossos. Onze cangaceiros foram degolados, entre eles Maria Bonita e Lampião. Começava uma verdadeira turnê das cabeças, que só terminou em 1969, quando foram fi nalmente sepultadas. Toda formosura da paisagem de Piranhas e de seu entorno serviram de cenário para os fi lmes Bye, Bye, Brasil (1979), de Cacá Diegues, e Baile Perfumado (1997), de Lírio Ferreira e Paulo Caldas. Nesse último, muitos personagens eram ex-cangaceiros e ex-volantes que viviam em Piranhas. Em 2003, o município foi declarado Patrimônio Nacional pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.

PIRANHAS TEM MAIS

Trilha da Pedra do Sino

Uma caminhada de um quilômetro adentro da caatinga conduz a uma inusitada formação rochosa: um empilhamento de pedras de granito de várias alturas e em equilíbrio quase impossível. Ao serem golpeadas, soam como toque de sinos.

Passeios de escuna

Do porto de Piranhas, a bordo de catamarã ou de escuna, pode-se visitar a Grota do Angico, os povoados de Entremontes e Ilha do Ferro, e o Lago de Xingó. Embarcados no porto flutuante de Karranca’s, fronteira com Sergipe, navega-se no cânion do São Francisco, com direito a mergulho nas águas verdes do rio entre os paredões avermelhados. O único ponto desfavorável desses passeios é a altura das músicas tocadas nas embarcações. Outra opção, mais silenciosa, com horários mais flexíveis, é alugar lanchas particulares.

Serventias dos cactus

As quituteiras de Piranhas fazem um saboroso doce do cactus para ser degustado com queijo coalho: a Coroa do Frade. Outro préstimo da planta é devolver mauolhado – daí ser comum vê-lo nas janelas das casas. Do cactus Facheiro, faz-se geléia. No tempo dos cangaceiros, alumiava como um facho as noites do sertão.

Preste Atenção

Repare nas cores das casas, edifícios públicos, pontes, escadarias e igrejas de Piranhas. Cada detalhe de acabamento da arquitetura – batentes, frisos, entalhes, auto-relevos, cornijas de gesso, bandeiras, caixilhos e frontões – são pintados em tons contrastantes com as cores das paredes. O resultado é um harmonioso e vibrante conjunto que permeia toda a cidade. Confi ra também a limpeza das ruas e da praia local.

Não deixe de ver

A Igreja de Santo Antonio de Lisboa, construída em 1790 e localizada no vilarejo de Piranhas Velha, de frente para as últimas corredeiras do São Francisco. Na fachada do singelo templo, um curioso auto-relevo mostra a imagem do santo em seu hábito franciscano, coroado com um vistoso cocar indígena de penas amarelas. Para os historiadores, foi artimanha utilizada pelos padres jesuítas para conquistar a simpatia dos índios.

Prata da Casa

Pontos para exclamação


ALAGOANAS ADAPTARAM A RENDA EUROPÉIA A SEUS GOSTOS.

Conta-se que as alagoanas de um vilarejo de pescadores, na época colonial, repararam que os detalhes das roupas das imigrantes holandesas eram muito semelhantes às redes de pescar de seus maridos. Tiveram a idéia de tecer e bordar adaptando a renda européia aos seus gostos, cores e usos. Mas não dá para buscar apenas uma origem para as nossas rendas e bordados. O Nordeste foi colonizado por imigrantes vindos de vários países europeus, que possuíam bordados de diferentes técnicas e origens. “Os donos de engenhos na época da Colônia iam buscar em Portugal, França e Itália roupas de cama e mesa. As bordadeiras daqui passaram a copiar os pontos e as rendas, e depois ensinavam para as moças da sociedade nos colégios de freiras”, pontua a designer Madalena Moreira. “Era considerado de bom-tom bordar o próprio enxoval e valorizava-se a delicadeza, além do capricho no acabamento e avesso das peças.” Ziguezagueando pelo São Francisco a bordo de um barco a motor, chega-se em 15 minutos à Ilha do Ferro, que tomou seu nome de uma formação rochosa em frente à cida-de. A poucos passos da borda do rio fi ca a sede da Art-ilha, uma associação com 45 artesãs, entre elas Poliana, Deda, Irene e Maiara. O bordado dali bebe de uma única fonte, uma fl or amarela denominada boanoite. Flor e bordado se fundem no nome, assim como as técnicas de sua execução. O tecido é desfi ado e torcido como na renda labirinto, mas se une aos pontos do rendendê. Esse raro bordado, único no Brasil, apresenta quatro diferentes composições, o boa-noite simples, o boa-noite de fl or, o cheio e o cheio com variação. Os bordados de Alagoas ou de Sergipe, assim como outros artesanatos de qualidade do Brasil, movimentam 2,8% de nosso Produto Interno Bruto. Esses dados seriam sufi cientes para entusiasmar mais parceiros para os projetos, a exemplo do estilista Ronaldo Fraga, que usou rendas e bordados em suas coleções. A brasileira Angélica Mueller realizou duas exposições na Alemanha com rendas e bordados de Alagoas, com grande sucesso de vendas. O sonho é que tais fi guras de proa se multipliquem pelo País, dinamizando o artesanato brasileiro e, por conseqüência, o trabalho das bordadeiras.

SERVIÇO

Como chegar

A TAM oferece vôos diários para Maceió, partindo das principais cidades brasileiras. Confi ra em www.tam.com.br

Onde ficar

Pousada Maria Bonita Antiga residência de ex-funcionários da ferrovia, com um agradável terraço que proporciona uma das mais privilegiadas vistas da cidade. Tel.: (82) 3686-1777. Pousada Nosso Lar Com boa localização, próxima à praça central. Sua proprietária é uma das talentosas bordadeiras da cidade, o que se traduz em zelo na decoração. Tel.: (82) 3686-3013.

Onde comer

Flor de Cactus Localizado no Mirante Secular (1899), o restaurante oferece, além da comida regional feita no capricho, uma vista panorâmica da cidade, das montanhas e do São Francisco, e uma deliciosa brisa. Tel.: (82) 3686-3406. Quiosque Beira Rio A especialidade são peixes e pitus de rio, acompanhados de farofas, queijo coalho e pirão de peixe ou camarão. Tudo muito saboroso. O tempero extra fi ca por conta do constante vaivém dos barcos que atracam no píer logo adiante. Tel.: (82) 3686-1318.

SAIBA MAIS

Cia. do Bordado de Entremontes: (82) 3686-6023 • Cooperativa dos Artesãos da Ilha do Ferro – Art-ilha: (82) 3624-8013